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Viajando Sozinha No Mali

Faxina na rua da Mesquita em Djenné. Foto: Patti Neves

Há alguns anos atrás, antes dos conflitos no norte do Mali envolvendo a AQIM (Al-Qaeda no Magrebe Islâmico) se intensificarem, resolvi por em prática um sonho antigo e viajar sozinha para o Mali, em uma aventura de 15 dias.

O ano era 2010 e nessa época já se ouvia sobre europeus sendo sequestrados na área. Confesso que a empreitada me deixou apreensiva no início pois era minha primeira viagem solo na África e eu não conhecia absolutamente ninguém que partilhava o sonho de conhecer Tombuctu (Timbuktu em inglês).

Estar sozinha não era problema. Nessa época eu estava solteira, era uma mulher independente, já havia morado sozinha em Paris e estava vivenciando minha segunda expatriação em Montréal, portanto viajar sozinha parecia "fichinha" pra alguém que já havia emigrado sozinha duas vezes...

Viajar sozinha ao Mali: porque Timbuktu?

Não sei se influenciada demais pelas aventuras do Tio Patinhas na infância ou pelos acordes de Ali Farka Touré, o fato é que esse destino me despertava uma sensação de invencibilidade, de poder ir onde eu bem entendesse, de poder desbravar o mundo, enfim, eu estava me achando a aventureira da hora, e decidi dar uma banana a todos os chatonildos de plantão que viviam dizendo que uma mulher branca sozinha no Mali estaria "praticamente pedindo para ser sequestrada" ha ha ha (rindo, mas de nervoso).

Mesquita de Sancoré (Mali). Foto: Patti Neves

O plano principal era conhecer a mesquita de Sancoré (em Timbuktu), passar uns dias nos arredores da mítica cidade e em seguida partir à camelo para um acampamento Tuareg em pleno Saara. Eu também planejava conhecer a mesquita de Djenné (patrimônio da UNESCO) e fazer um trek pelo pays Dogon (ou Dogon country, em inglês). Visitar algumas tribos nômades pelo caminho e fazer um passeio de pinasse no rio Niger também estava nos meus planos.

Em Timbuktu eu esperava vivenciar um pouco da cultura e as origens musicais de Touré, de Tinariwen e outros grandes blues-man, consagrados em festivais do deserto e  considerados como exemplos contemporâneos da verdadeira raíz do blues africano (que todo mundo pensa ter sido inventado nos EUA), mas esse já é papo para um outro post.

Viajando sozinha no Mali: A preparação 

A preparação da viagem foi a parte mais difícil.

Após ter passado semanas estudando o trajeto, cheguei na conclusão que não conseguiria reservar absolutamente nada com antecedência, pois era impossível encontrar informações sobre ônibus na web. Por princípio pessoal, estava fora de cogitação reservar um tour “turístico”, então eu decidi encontrar vôos (ou caronas) uma vez por lá.

Lembro me de ter telefonado insistentemente dia e noite na Air Mali e acabei encontrando um bilhete Bamako-Timbuktu (só de ida).

Resolvi inverter o itinerário e começar do final, assim minha chegada em Timbuktu estaria garantida. Eu faria o caminho de volta até Bamako de carona, de busão, a pé…. 

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Timbuktu (ponto A no mapa) é chamado pelos locais como "O Portal do Sahara" e dando uma olhadinha acima, não é muito difícil adivinhar o porquê.

De lá partem as caravanas de tuaregs, com centenas de camelos, que vão até Taudenni buscar sal, 750 Km deserto adentro. A jornada completa leva 45 dias (ida e volta), uma prática de comércio existente desde a idade média.

No dia eu que completei a transferência bancária do vôo Bamako-Timbuktu, a sensação era de estar caindo em uma grande cilada.

Então meu roteiro havia ficado assim: primeira parada Paris, segunda Bamako, e terceira, Timbuktu (sem bilhete de retorno) haha...

Pra piorar a situação, nos poucos relatos que lia, quase não havia mulheres viajando na área, então resolvi empacotar em meus pertences uma aliança de casamento (falsa, óbvio), roupas cobrindo braços e pernas (para um calor de 40 C), toneladas de repelente, colchonete de camping incluindo uma tela de mosquitos) e outras coisitas más, que se revelaram bem úteis no final.

Primeira parada Paris

Eu não deveria incluir uma simples conexão no meu relato, mas vai que alguma louca decida fazer o trajeto hoje, no complicado cenário político atual.

No meu roteiro eu havia colocado 8 horas de conexão no Charles de Gaulle para poder trocar dinheiro em Paris, já que em Montréal, cidade onde morava na época, não havia conseguido encontrar Francos Malianos (CFA).

Obviamente o Mali não seria um destino para viajar com cartões de crédito.

A aventura havia começado ali, pois o tempo acabou sendo curto após ter sofrido incontáveis negativas nas casas de câmbio oficiais da Ópera.

E lá estava eu, à 5 horas do embarque, sem nenhum tostão, correndo em Barbés-Rochechouart, conhecido reduto africano (e islâmico), parando as pessoas na rua e oferecendo alguns Euros, até conseguir que um gentil Maliano me levasse ao lugar certo: uma barraquinha improvisada escondida entre um salão de cabeleireiros Afro e uma manicure.

Barbés - Rochechouart, Paris. Crédito: Alamy

Finalmente, Bamako!

Cheguei ao Mali no final da tarde e já estava anoitecendo quando a pessoa que viria me buscar no aeroporto apareceu!

Longa estória resumida: meu anfitrião era um desconhecido que havia topado me receber na casa dele por meio de um fórum francês de viagens solidárias.

Funcionava assim: você entrava em contato diretamente com os locais, pagava uma taxa de estadia (doação voluntária) e ao invés de gastar dinheiro em hotel, você ajudaria uma família local a suprir as necessidades do momento.

Bonjour mademoiselle, bienvenue au Mali!”

Era um jovem africano com forte sotaque casado com uma jovenzinha que não falava francês. Na casa simples, encontrei um quarto preparado só pra me receber.

O colchão meio encardido no chão e a rede de mosquitos que pendia do teto era praticamente tudo o que existia ali.

Muito contente de ter encontrado alguém em quem pudesse confiar, cai no sono cheia de expectativas para o dia seguinte.

Meu primeiro anfitrião em Bamako. Almoçamos juntos antes do meu vôo para Timbuktu. Foto: Patti Neves

O vôo para Timbuktu

Porque fotos falam mais do que mil palavras, uma olhadinha nas imagens abaixo podem dar uma idéia da precariedade do avião.

O mais curioso era o sinal que dizia “não fume enquanto estiver usando a mascara de oxigênio”.

Eu estava achando tudo aquilo interessantíssimo, o pequeno aviãozinho de 10 lugares, até que ao ganhar meu assento, olhei para o chão e percebi que metade do carpete estava descolado. 

Passei um tempinho tentando adivinhar a idade do avião.

Mal sabia o que me esperava na primeira parada em Mopti.

Sim, além de tudo meu vôo Bamako-Timbuktu tinha uma parada em Mopti (da qual eu só fiquei sabendo uma vez dentro do avião).

A primeira surpresa ao chegar ao minúsculo aeroporto de Mopti era que já estávamos praticamente em uma região desértica (apesar de tecnicamente ainda ser chamada de "savana" por conta de alguns arbustos).

Como ficaríamos por ali um momento, decidi tomar um café com leite. Estava pensando em um "pingado" mesmo, mas notei que eles não tinham pão.

A conversa que se seguiu foi curiosa.

O atendente me sorria enquanto me entregava um copo de café preto (tipo americano).

Ele falava bem Francês, então repeti várias vezes a frase  "mas com leite, por favor" mas ele continuava sorrindo sem me dizer nada e me entregando o café preto, puro.

Depois de muita insistência (e dos olhares espantados dos outros viajantes) eu acabei percebendo que na verdade ele estava sorrindo pois estava sem graça. Acho que não tinha tido coragem de me contar a verdade: não existia leite por ali.

Eu estava literalmente "viajando".

Engoli o café preto com lágrimas nos olhos enquanto observava a paisagem lá fora. Fiquei pensando como seria possível viver (e criar animais) em uma zona tão árida. 

Mas eu ainda não sabia de nada. Minha aventura no Mali nem tinha começado.

Você poderá encontrar a continuação desse post em como chegar à Timbuktu.

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Viajando sozinha no Mali. Photo Credit: Ruud Zwart