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Como Chegar À Timbuktu

Meninas indo à escola em Tombuctu (Timbuktu). Foto: Patti Neves

Antes de mais nada, se você já leu o post Viajando sozinha no Mali vai descobrir que eu cheguei em Timbuktu com a Air Mali, diretamente de Bamako, orgulhosamente ostentando uma aliança de casamento (fake, pois era solteira na época).

Tinha lido sobre os costumes locais e tristemente compreendido que no Mali, as únicas mulheres que viajavam sozinhas eram as prostitutas... então elaborei um plano:

Tal como a Sherazade das mil e uma noites, à cada cidade que eu visitava, contava uma nova estória (e aquela em que eu estava indo encontrar o marido na próxima parada, era evidentemente a minha preferida)... e assim passava os dias, me deslocando pelo país. 

Não que isso me protegesse das perguntas. Muitos locais simplesmente não entendiam o conceito de "viajar para conhecer outras culturas" e ficavam espantados que meu marido me deixasse viajar só, mesmo achando que eu me encontraria com ele nos próximos dias (ha ha). 

Com meu guia Tuareg, rumando para o acampamento no deserto (Norte de Timbuktu). Foto: Pati Neves

Viagens, nos padrões Malianos, seriam somente para negócios, vendas ou mudanças sazonais com a familia (tribos nômades).

O Mali é um país super rico em diversidade cultural e etnias, mas acima de tudo é um país com 90% de muçulmanos (hoje controlado por grupos islâmicos fundamentalistas), por isso, aconselho todo mundo à pesquisar muito sobre qualquer destino antes de se jogar pois o risco de terrorismo é alto.

Em relação à mulheres sozinhas, faz parte da minha crença pessoal que é sempre possível manter a dignidade e viajar para qualquer lugar desse mundão, sem medo, mas às vezes algumas mentirinhas básicas ou umas "roupinhas meio diferentes" (ex: burcas) podem ser o único jeito de contornar a situação.

Como chegar à Timbuktu

Como detalhado no post anterior cheguei em Timbuktu com um vôo Bamako-Timbuktu mas como eu não tinha um vôo de retorno, refiz a volta de carona, de balsa e posteriormente a pé (4 dias de trekking no país Dogon), ou seja é possível chegar (e partir) por terra, apesar de não ser aconselhável.

Segundo a Air Mali, atualmente os vôos continuam suspensos até segundo aviso, por isso não deixe de ler os relatórios do GOV.UK antes de planejar qualquer viagem na área. 

A mesquita de Sancoré, Timbuktu (Mali). Foto: Patti Neves

Existem várias opções para chegar à Timbuktu por terra, e a partir de Mopti é possível fazer o caminho em 4x4 (dois dias de viagem) com poucos pontos de abastecimento de água.

Chegando a Kabara, há um ferry que atravessa o rio Niger (Timbuktu fica à alguns quilômetros do rio) e uma vez feita a travessia, existe finalmente uma rua pavimentada levando à mítica cidade. Para maiores detalhes sobre os acessos recomendo consultar o site Explore Timbuktu.

E porque ir até Timbuktu? 

Antes de mais nada, é preciso saber que Timbuktu (hoje patrimônio da UNESCO) sempre foi considerada uma cidade legendária por causa de antigos exploradores que acreditavam que a cidade, escondida no meio do deserto, seria feita de ouro. Além do mais, dúvidas sobre a exata localização (sem contar na própria existência da cidade) eram motivos de concursos entre britânicos e franceses, ávidos para serem os primeiros à mapear o local.

Naqueles tempos, Timbuktu era um oásis onde trocas de sal (e ouro) eram praticadas entre os nômades Tuaregs e os Muçulmanos. Alguns exploradores europeus chegaram a encontrar a cidade, mas nunca voltaram vivos para contar as novas. 

Alguns acabaram degolados pelos Tuaregs antes de deixar a cidade (pois estes temiam que Timbuktu acabasse invadida por colonizadores).

Homem na porta da Universidade de Sancoré. Foto: Patti Neves

Até que em 1828, um francês chamado René Caillé, conseguiu visitar a cidade e voltar vivo para contar a aventura. Segundo ele,Timbuktu "era uma cidade de casas de barro, sem muito interesse" e não havia ouro nenhum pelas paredes. 

René acabou ganhando um prêmio de 10 000 francos do governo da França e o título de "Cavaleiro de Honra" mas ainda teve que brigar com os Ingleses antes de conseguir ter os seus relatos reconhecidos como verdadeiros.

O que fazer em Timbuktu:

À parte visitar as duas mesquitas mais importantes (La Grande Mosquée Djingareyber e Sankoré), era possível visitar a casa onde René Caillé morou. As casas dos exploradores que morreram antes de conseguir sair de Timbuktu também são marcadas com placas (algumas são propriedade privada).

Entre outras coisas bacanas, conferir as contruções feitas inteiramente de barro (técnica da crépissage) os mercados da região, passar um dia todo com alguma tribo nômade ou mesmo sair em expedição de camelos para dormir em um acampamento Tuareg foram as atividades que mais gostei. Outros pontos:

A universidade de Sancoré e os manuscritos arábes

Apesar da falta "de ouro", René Caillé certamente teve a oportunidade de encontrar a mais antiga universidade do mundo: L’Université de Sankoré de Tombouctou, centro de aprendizado da cultura islâmica no deserto.

Hoje em dia os manuscritos (700,000 no total) teoricamente podem ser visitados nas "Bibliothèques familiales des Imams Essayouti".

Quando estive por lá havia uma visita guiada, mas um atentado suicida nos arredores em Septembro de 2013 estremeceu algumas estruturas básicas, o que afetou as visitas.

Segundo o site da ONU, três bibliotecas foram reabilitadas em 2015, incluindo a biblioteca mencionada acima. Não consegui encontrar nenhuma outra informação atualizada à respeito.

Visita guiada dos manuscritos em Timbuktu. Foto: Patti Neves

Mercados de rua e o Grand-Marché 

Mesmo quem visitou alguns mercados africanos pessoalmente tem dificuldade de explicar as imagens abaixo. Em uma das imagens, uma mulher passa diante de um "açougue", ou seja uma barraquinha na rua com pedaços aleatórios de carne (e moscas) expostos na rua.

Na rua paralela ao mercado, um açougue em Timbuktu. Foto: Patti Neves

Existe uma enorme quantidade de produtos dos quais você não faz a menor idéia, e a abstração provocada pela visão de cenas meio surreais (ex. vísceras de animais penduradas em um varal ou uma mulher esmagado alguma coisa com um pilão) faz você ter a sensação de ter voltado no tempo.

Bolas brancas (de manteiga de Karité) do tamanho de bolinhas de tênis são empilhadas em bacias e podem ser usadas como moeda de troca, cera impermeável, condicionador de cabelos, óleo de cozinha e material para velas. 

Algumas vezes eu não conseguia entender direito as cenas que via na rua e acabava entrando em uma realidade paralela (que eu nem suspeitava existir em pleno século XXI), ou seja, uma viagem total.

O mercado pode parecer desinteressante para quem não liga para a cultura Africana (ou para as pessoas que dizem "não gostar de ver pobreza" esperando que assim ela desapareça, ou pretendendo que alguém "goste" de pobreza), no entanto em países pobres como o Mali, a riqueza cultural do povo certamente compensa a falta de dinheiro.

Preparação de cerveja artesanal em uma ruela de Hombori, Mali. Foto: Patti Neves

As diversas tribos nômades do Mali

Das coisas mais espetaculares que descobri nessa viagem é o fato de que algumas tribos ainda praticam escambo, trocando coisas entre si.

Por exemplo, os nômades de etnia Bozo são especializados na pesca, e mudam suas barracas de lugar conforme as cheias dos rios, trazendo sempre peixes para o mercado. Os vegetais costumam vir dos Dogons, conhecidos agriculturores.

O sal vem com os camelos, trazidos pelos Tuaregs e finalmente algumas outras tribos (como ex. os Peul) são especializados em criações de animais.

No acampamento Tuareg, ao norte de Timbuktu, Mali. Foto: Patti Neves

Amei ter tido a oportunidade de viajar até o acampamento Tuareg. É muito difícil imaginar que desse lugar partem caravanas com centenas de camelos, e que eles fazem 800 Km no meio de dunas "só" para buscar sal (sua principal fonte de renda). Os Tuaregs subsistem praticamente de arroz e carne seca, já que a água é um bem extremamente racionado.

Cada tribo nômade tem seu lugar na sociedade e costumam sobreviver sem preocupações de dinheiro, se ajudando e se respeitando mutualmente. Fiquei particularmente impressionada pelo fato deles não usarem relógios, não terem documentos e nem se preocuparem com horários precisos para coisas no futuro. A descoberta de viver somente no presente, pra mim foi sensacional. 

Visitando uma tribo Tuareg no Mali. Foto: Patti Neves

Não somente em Timbuktu, mas também em Mopti e Ségou, tive a oportunidade também de visitar outras tribos nômades e de conversar com uma mulher de etnia Fulani (Peul em Francês), tribo que ainda pratica o doloroso ritual da tatuagem negra (tchoodi) em volta da boca.

Esse costume é utilizado entre elas como prova de coragem e uma maneira de ficarem mais atraentes, segundo a cultura local.

Mulheres da etnia Fulani (Peul), com as tatuagens ao redor da boca. Foto: Patti Neves

Explicação completa das tatuagens no site Pulaku (não clicar nesse link se você tiver estômago sensível).

Como sair de Timbuktu

Não existem ônibus à partir de Timbuktu, nem mesmo para ir até a balsa, portanto continua difícil chegar (e partir) dessa cidade perdida.

No meu caso, acabei arrumando carona em 4x4 com os primos do meu guia Tuareg, que estavam indo até Hombori, (mas muitas pessoas vão direto à Douentza e logo em seguida começam o trek em Bandiagara, o chamado pays Dogon). 

O trekking estava nos meus planos também, mas já que eu havia encontrado "conhecidos que iam mais ou menos no mesmo caminho" eu não precisaria mais me preocupar com transporte nem acomodação, pelo menos até o próximo destino.

Balsa saindo de Timbuktu. Se você tem pavor de turistas, esse é o lugar para você. Foto: Patti Neves

Como expliquei no primeiro post, o objetivo da minha viagem no Mali era fazer uma viagem solidária onde eu ficaria hospedada nas casas dos locais (ao invés de ficar em hotéis) e isso acabou me possibilitando ter uma ótima flexibilidade, além da oportunidade única de aprender à confiar na capacidade humana de se entreajudar. 

Em compensação eu não tinha a menor idéia de como sairia de Hombori pra Bandiagara (de onde partiria em seguida para o trek no pays Dogon).

No dia em que deixei Timbuktu estava fazendo 42 C, e não por acaso, após algumas horas rodando, um dos pneus furou.

Tínhamos meia garrafa de água (morna) para 4 adultos e estávamos com fome. Fome de verdade, daquela em que o estômago dói. Não existiam paradas nas estradas para comer algo, tal como conhecemos aqui. Álias, mal existiam "estradas" como se vê nas fotos. 

O Harmattan (vento diabólico do Saara) estava batendo forte esse dia e quase não tínhamos visibilidade. Respirávamos areia.

Lembro de ter ficado horas cuspindo um catarro escuro, enquanto esperava impaciente embaixo da "sombra" imaginária de uma árvore seca...

Carona em 4x4, ao sul de Timbuktu, Mali. Foto: Patti Neves

Essa troca de pneu, na minha pespectiva, durou uns 3 dias... algumas dúvidas cruzaram minha mente.

Eu estava agitada e um pouco preocupada. Percebi que a preocupação era coisa de gente pessimista, e eu não poderia me permitir de ser pessimista naquela situação vulnerável.

Me resignei com as circunstâncias e de repente estava feliz! Estava ali por livre e expontânea vontade e pela primeira vez na vida questionava seriamente os próprios pensamentos... 

Hoje vejo que podemos facilmente esquecer o nome daquela praia deslumbante onde molhamos os pés pela primeira vez no Caribe... mas nunca aquela sensação de ter amadurecido alguns meses em poucas horas de dificuldades. Para isso também servem as viagens, para que voltemos diferentes.

O relato continua no post "Trek no país Dogon e visita a Djenné" (data prevista: 28 de Agosto de 2018).

 

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Como chegar à Timbuktu? Foto: Patti Neves